O Direito à Felicidade
— Para mim o próprio objetivo da vida é perseguir a felicidade. Isso está claro. Se acreditamos em religião, ou não; se acreditamos nesta religião ou naquela; todos estamos procurando algo melhor na vida. Por isso, para mim, o próprio movimento da nossa vida é no sentido da felicidade...
Com estas palavras, pronunciadas diante de uma platéia numerosa no Arizona, o Dalai Lama expôs o cerne da sua mensagem. No entanto, sua afirmação de que o propósito da vida era a felicidade levantou na minha cabeça uma questão.
— O senhor é feliz? — perguntei-lhe mais tarde, quando estávamos sozinhos.
— Sou — respondeu ele e depois acrescentou. — Decididamente... sou. - Havia na sua voz uma sinceridade que se refletia na sua expressão e nos seus olhos.
— Mas será que a felicidade é um objetivo razoável para a maioria de nós? — perguntei. — Será que ela realmente é possível?
— É. Para mim, a felicidade pode ser alcançada através do treinamento da mente.
Num nível básico de ser humano, eu não podia deixar de me sensibilizar com a idéia da felicidade como um objetivo atingível. Como psiquiatra, porém, eu estava sobrecarregado com idéias como a opinião de Freud de que se sente a "propensão a dizer que a intenção de que o homem seja 'feliz' não faz parte dos planos da 'Criação'". Esse tipo de transformação levou muitos na minha profissão à conclusão sombria de que o máximo que se poderia esperar era "a transformação da aflição histérica em mera infelicidade". A partir dessa perspectiva, a afirmação de que havia um caminho bem definido até a felicidade parecia ser uma idéia totalmente radical. Quando voltei meu olhar para os anos que passei na formação psiquiátrica, raramente consegui me lembrar de ter ouvido a palavra "felicidade" ser sequer mencionada com objetivo terapêutico. Naturalmente, havia bastante conversa sobre o alívio dos sintomas de depressão ou ansiedade do paciente, de resolver conflitos interiores ou problemas de relacionamento; mas jamais com o objetivo expresso de tornar o paciente feliz.
No Ocidente, o conceito de alcançar a verdadeira felicidade sempre pareceu mal definido, impalpável, esquivo. Até mesmo a palavra happy é derivada do termo happ em islandês, que significa sorte ou oportunidade. Parece que a maioria de nós encara da mesma forma a misteriosa natureza da felicidade. Naqueles momentos de alegria que a vida proporciona, a felicidade dá a impressão de ser algo que caiu do céu. Para minha cabeça de ocidental, ela não parecia ser o tipo de aspecto que se pudesse desenvolver e sustentar, apenas com o "treinamento da mente".
— Quando falo em "treinar a mente", neste caso, não estou me referindo à "mente" apenas como a capacidade cognitiva da pessoa ou seu intelecto. Estou sim, usando o termo no sentido da palavra Sem, em tibetano, que tem um significado muito mais amplo, mais próximo de "psique" ou "espírito"; um significado que inclui o intelecto e o sentimento, o coração e a mente. Por meio da uma certa disciplina interior, podemos sofrer uma transformação da nossa atitude, de todo o nosso modo de encarar e abordar a vida.
"Quando falamos dessa disciplina interior, é claro que ela pode envolver muitos aspectos, muitos métodos. Mas em geral começa-se identificando aqueles fatores que levam à felicidade e aqueles que levam ao sofrimento. Depois desse estágio, passa-se gradativamente a eliminar os que levam ao sofrimento e a cultivar os que conduzem à felicidade. É esse o caminho."
O Dalai Lama afirma ter atingido certo grau de felicidade pessoal. E, ao longo da semana que passou no Arizona, eu testemunhei com freqüência como essa felicidade pessoal pode se manifestar como uma simples disposição para entrar em contato com o outro, para gerar uma sensação de afinidade e boa vontade, até mesmo nos encontros mais curtos.
Um dia de manhã, depois de sua palestra aberta ao público, o Dalai Lama seguia por um pátio externo no caminho de volta ao seu quarto no hotel, cercado pelo séqüito de costume. Ao perceber uma camareira do hotel parada perto dos elevadores, ele parou para perguntar de onde ela era. Por um instante, ela pareceu surpresa com aquele homem de aparência exótica, de vestes marrom-avermelhadas, e demonstrou estar intrigada com a deferência do séqüito. Depois, ela sorriu.
— Do México — respondeu com timidez. O Dalai Lama fez uma rápida pausa para falar alguns instantes com ela e então seguiu adiante, deixando-a com uma expressão de enlevo e prazer. No dia seguinte, à mesma hora, ela apareceu no mesmo local com outra integrante da equipe de camareiras, e as duas o cumprimentaram calorosamente enquanto ele ia entrando no elevador. A interação foi rápida, mas as duas pareciam radiantes da felicidade enquanto voltavam ao trabalho. Todos os dias daí em diante, reuniam-se a elas mais algumas camareiras no local e horário designado, até que no final da semana já havia ali dezenas de camareiras, nos seus uniformes engomados em cinza e branco, formando uma linha de recepção que se estendia ao longo do trajeto até os elevadores.
Nossos dias são contados. Neste exato momento, muitos milhares de pessoas vêm ao mundo, algumas fadadas a viver apenas alguns dias ou semanas, para depois sucumbirem tragicamente a alguma doença ou outra desgraça. Outras estão destinadas a abrir caminho até a marca dos cem anos, talvez até ultrapassá-la um pouco, e a provar cada sabor que a vida tem a oferecer: a vitória, o desespero, a alegria, o ódio e o amor. Nunca sabemos. Quer vivamos um dia, quer um século, sempre resta um pergunta crucial: qual é o propósito da vida? O que confere significado à nossa vida?
O propósito da nossa existência é buscar a felicidade. Parece senso comum, e os pensadores ocidentais como Aristóteles e William James concordam com a idéia. No entanto, será que uma vida baseada na busca da felicidade pessoal não seria, em si, egocêntrica, até mesmo comodista? Não necessariamente. Na realidade, pesquisas e mais pesquisas revelaram que são as pessoas infelizes que costumam ser mais centradas em si mesmas e que, em termos sociais, com freqüências são retraídas, ensimesmadas e até mesmo hostis. Já as pessoas felizes são em geral consideradas mais sociáveis, flexíveis, criativas e capazes de suportar as frustrações diárias com maior facilidade do que as infelizes. E, o que é mais importante, considera-se que sejam mais amorosas e dispostas ao perdão do que as infelizes.
Pesquisadores desenvolveram algumas experiências interessantes que revelaram que as pessoas felizes demonstram um certo tipo de abertura, uma disposição a estender a mão e ajudar os outros. Eles conseguiram, por exemplo, induzir um estado de espírito de felicidade numa pessoa que se submeteu ao teste, criando uma situação em que ela inesperadamente encontrava dinheiro numa cabine telefônica. Fingindo ser um desconhecido, um dos participantes da experiência passou então por ali e deixou cair "acidentalmente" uma pilha de papéis. Os pesquisadores queriam saber se o objeto da experiência pararia para ajudar o desconhecido. Em outra situação, levantou-se o ânimo dos objetos da experiência com um disco de piadas, e eles depois foram abordados por alguém que passara por necessidade (também de concluio com os pesquisadores) e queria apanhar dinheiro emprestado. Os pesquisadores concluíram que os objetos da experiência que estavam se sentido felizes tinham maior probabilidade de ajudar alguém ou de emprestar dinheiro do que indivíduos num "grupo de controle", a quem era apresentada a mesma oportunidade de ajudar, mas cujo estado de espírito não havia sido estimulado com antecedência.
Embora esses tipos de experiência contradigam a noção de que a procura a realização da felicidade pessoal de algum modo levam ao egoísmo e ao "ensimesmamento", todos nós podemos conduzir nossa própria experiência no laboratório do nosso próprio dia-a-dia. Suponhamos, por exemplo, que estejamos parados num congestionamento. Depois de vinte minutos, o trânsito volta a fluir, ainda a uma velocidade muito baixa. Vemos alguém em outro carro fazendo sinais de que quer passar para nossa faixa à nossa frente. Se estivermos de bem com a vida, é maior a probabilidade de reduzirmos a velocidade para deixar a pessoa passar. Se estivermos nos sentindo péssimos, nossa reação pode ser simplesmente a de aumentar a velocidade e fechar o espaço. "Ora, se seu estou aqui parado todo esse tempo, por que os outros não podem esperar?"
Partimos, então, da premissa básica de que o propósito da nossa vida é a busca da felicidade. É uma visão da felicidade como um objetivo verdadeiro, um objetivo para a realização do qual podemos dar passos positivos. E, à medida que começarmos a identificar os fatores que levam a uma vida mais feliz, estaremos aprendendo como a busca da felicidade oferece benefícios não só ao indivíduo, mas à família do indivíduo e também à sociedade como um todo.
Dois anos atrás, uma amiga minha teve um ganho inesperado. Um ano e meio antes daquela época, ela havia abandonado o emprego de enfermeira, para ir trabalhar para dois amigos que estavam abrindo uma pequena empresa de atendimento de saúde. A companhia teve um sucesso meteórico e em um ano e meio foi comprada por um grande conglomerado por um valor altíssimo. Tendo participado da empresa desde o início, minha amiga saiu da venda cheia de opções de compra de ações — o suficiente para conseguir aposentar-se aos trinta e dois anos de idade. Eu a vi há não muito tempo e perguntei se estava gostando de estar aposentada.
— Bem — disse ela — é ótimo poder viajar e fazer o que eu sempre quis fazer. Mas o estranho é que, depois que me recuperei da emoção de ganhar todo aquele dinheiro, as coisas mais ou menos voltaram ao normal. Quer dizer, tudo está diferente, comprei uma casa nova e tudo o mais, mas em geral acho que não estou muito mais feliz do que era antes.
Por volta da mesma época em que minha amiga estava recebendo os lucros inesperados, outro amigo da mesma idade descobriu que era soropositivo. Nós conversamos sobre como ele estava lidando com seu estado.
— É claro que a princípio fiquei arrasado — disse ele. — E demorei quase um ano só para aceitar o fato de estar com o vírus. Mas ao longo do último ano, as coisas mudaram. Parece que aproveito cada dia mais do que jamais aproveitei antes. E, se analisarmos de momento a momento, estou mais feliz agora do que nunca fui. Parece simplesmente que aprecio mais o dia-a-dia; e sinto gratidão por não ter até agora apresentado nenhum sintoma grave da AIDS e por poder realmente aproveitar o que tenho. E, muito embora eu preferisse não ser soropositivo, devo admitir que, sob certos aspectos, a doença transformou minha vida... para melhor...
— Em que termos? — perguntei.
— Bem, por exemplo, você sabe que eu sempre tive a tendência a ser um materialista inveterado. Só que ao longo do último ano, a procura da aceitação da minha mortalidade descortinou todo um mundo novo. Comecei a explorar a espiritualidade pela primeira vez na minha vida, lendo um monte de livros e conversando com as pessoas... descobrindo tantas coisas nas quais nunca havia pensado antes. Fico empolgado só de acordar de manhã, de pensar no que o dia pode me trazer.
Essas duas pessoas ilustram o ponto essencial de que a felicidade é determinada mais pelo estado mental da pessoa do que por acontecimentos externos. O sucesso pode produzir uma sensação temporária de enlevo, ou a tragédia pode nos mandar para um período de depressão, mas mais cedo ou mais tarde nosso nível geral de felicidade acaba migrando de volta para uma certa linha de referência. Os psicólogos chamam esse processo de adaptação; e nós podemos ver como esse princípio atua no nosso dia-a-dia. Um aumento, um carro novo ou um reconhecimento por parte dos colegas podem nos deixar animados por um tempo; mas logo voltamos ao nosso nível costumeiro de felicidade. Da mesma forma, uma discussão com um amigo, um automóvel na oficina ou um pequeno ferimento podem nos deixar de péssimo humor, mas em questão de dias nosso espírito volta ao que era antes.
Essa tendência não se limita a acontecimentos triviais, de rotina, mas persiste mesmo sob condições mais extremas de sucesso ou catástrofe. Pesquisadores que estudavam os ganhadores da loteria estadual no Illinois e da loteria britânica descobriram, por exemplo, que a empolgação inicial ia passando com o tempo e os ganhadores voltavam à sua faixa habitual de felicidade de cada momento. E outros estudos demonstraram que, mesmo aquelas pessoas que são vítimas de acontecimentos catastróficos, como por exemplo o câncer, a cegueira ou a paralisia, tipicamente recuperam seu nível normal ou quase normal de felicidade de rotina depois de um período adequado de ajuste.
Portanto, se nossa tendência é voltar para o nível de referência de felicidade que nos é característico, não importa quais sejam as condições externas, o que então determina esse nível de referência? E, o que é mais importante, será que ele pode ser modificado, fixado numa faixa mais alta? Alguns pesquisadores defenderam recentemente a tese de que o nível de felicidade ou bem-estar característico de um indivíduo é determinado geneticamente, pelo menos até certo ponto. Estudos como, por exemplo, um que concluiu que gêmeos idênticos (que têm a mesma constituição genética) tendem a apresentar níveis muito semelhantes de bem-estar — independentemente do fato de terem sido criados juntos ou separados — levaram esses pesquisadores a postular a existência de um ponto biológico fixo para a felicidade, instalado no cérebro desde o nascimento.
Entretanto, mesmo se a constituição genética desempenhar um papel no que diz respeito à felicidade — e ainda não foi dada a última palavra quanto à extensão desse papel — há um consenso geral entre os psicólogos de que qualquer que seja o nível de felicidade que nos é conferido pela natureza, existem passos que podem ser dados para que trabalhemos com o "fator mental", a fim de aumentar nossa sensação de felicidade. Isso, porque nossa felicidade de cada momento é em grande parte determinada por nosso modo de encarar a vida. Na realidade, o fato de nos sentirmos felizes ou infelizes a qualquer dado momento costuma ter muito pouco a ver com nossas condições absolutas mas é, sim, uma função de como percebemos nossa situação, da satisfação que sentimos com o que temos.
A mente que compara
O que determina nossa percepção e nosso nível de satisfação? Nossa sensação de contentamento sofre forte influência da nossa tendência à comparação. Se comparamos nossa situação atual com nosso passado e concluímos que estamos em melhor situação, sentimo-nos felizes. Isso ocorre, por exemplo, quando nossos rendimentos anuais sobem de repente de US$ 20.000 para US$ 30.000, mas não é o valor absoluto da renda que nos deixa felizes, como logo descobrimos quando nos acostumamos ao novo patamar e percebemos que só voltaremos a ser felizes quando ganharmos US$ 40.000 por ano. Também olhamos à nossa volta e nos comparamos com os outros. Por maior que seja nossa renda, nossa tendência é sentir insatisfação se nosso vizinho estiver ganhando mais. Atletas profissionais queixam-se amargamente de salários anuais de um, dois ou três milhões de dólares, mencionando o salário mais alto de um colega da equipe como justificativa para seu descontentamento. Essa tendência parece corroborar a definição de H. L. Mencken de um homem rico: aquele cuja renda superar em cem dólares a renda do marido da irmã da sua mulher.Logo, pode-se ver como nosso sentimento de satisfação com a vida muitas vezes depende da pessoa com quem estamos nos comparando. Naturalmente, comparamos outros aspectos além da renda. A comparação constante com quem é mais inteligente, mais bonito ou mais bem-sucedido do que nós também costuma gerar inveja, frustração e infelicidade. No entanto, podemos usar esse mesmo princípio de modo positivo. Podemos aumentar nossa sensação de satisfação com a vida comparando-nos com os que são menos afortunados do que nós e refletindo sobre tudo o que temos.
Pesquisadores realizaram uma série de experiências e demonstraram que o nível de satisfação com a vida de uma pessoa pode ser elevado através de uma simples mudança de perspectiva e da visualização de como as coisas poderiam ser piores. Num estudo, mostraram-se a mulheres na University of Wisconsin em Milwaukee imagens das condições de vida extremamente duras vigentes em Milwaukee na virada do século passado, ou pediu-se às mulheres que imaginassem tragédias pessoais, como sofrer queimaduras ou ficar deformada, e escrevessem a respeito. Depois de terminado esse exercício, foi pedido às mulheres que avaliassem a qualidade das suas próprias vidas. O exercício resultou num aumento da sensação de satisfação com a vida. Em outra experiência na State University of New York, em Buffalo, pediu-se aos objetos da pesquisa que completassem a frase "Fico feliz por não ser..." Depois de repetir esse exercício cinco vezes, os participantes apresentaram uma nítida elevação nos seus sentimentos de satisfação. Pediu-se a outro grupo que completasse a frase "Eu gostaria de ser..." Dessa vez, a experiência deixou as pessoas sentindo uma insatisfação maior com a vida.
Essas experiências, que demonstram nossa possibilidade de aumentar ou diminuir nossa sensação de satisfação com a vida por meio de uma mudança de perspectiva, sugerem com clareza a supremacia da nossa disposição mental no que diz respeito a levar uma vida feliz.
— Embora seja possível alcançar a felicidade — explica o Dalai Lama —, ela não é algo simples. Existem muitos níveis. No buddhismo, por exemplo, há uma referência aos quatro fatores de realização, ou felicidade: riqueza, satisfação material, espiritualidade e iluminação. Juntos eles abarcam a totalidade da busca do indivíduo pela felicidade.
"Deixemos de lado por um momento as aspirações máximas espirituais ou religiosas, como a perfeição e a iluminação, e lidemos com a alegria e a felicidade como as entendemos num sentido rotineiro ou material. Dentro desse contexto, há certos elementos essenciais que convencionamos reconhecer como propiciadores da alegria e da felicidade. Por exemplo, considera-se que a saúde é um dos fatores necessários para uma vida feliz. Outro fator que encaramos como fonte de felicidade são nossos recursos materiais, ou a riqueza que acumulamos. Outro fator é ter amigos ou companheiros. Todos nós reconhecemos que, a fim de levar uma vida realizada, precisamos de um círculo de amigos com quem possamos nos relacionar emocionalmente e em quem confiemos.
"Ora, todos esses fatores são, no fundo, fontes de felicidade. No entanto, para que um indivíduo possa fazer pleno uso delas com o intuito de levar uma vida feliz e realizada, sua disposição mental é essencial. Ela tem importância crucial."
"Se utilizarmos nossas circunstâncias favoráveis, como nossa saúde ou fortuna, de modo positivo, na ajuda aos outros, elas poderão contribuir para que alcancemos uma vida mais feliz. E, naturalmente, nós apreciamos esses aspectos: nossos recursos materiais, nosso sucesso e assim por diante. Porém, sem a atitude mental correta, sem a atenção ao fator mental, esses aspectos terão pouquíssimo impacto na nossa sensação de felicidade a longo prazo. Por exemplo, se a pessoa nutre pensamentos rancorosos ou muita raiva bem no fundo de si mesma, isso acaba com a saúde e, assim, destrói um dos fatores. Da mesma forma, quando se está infeliz ou frustrado no nível mental, o conforto físico não ajuda muito. Por outro lado, se a pessoa conseguir manter um estado mental calmo e tranqüilo, poderá ser muito feliz apesar de sua saúde ser frágil. Ou ainda, quando está vivendo um momento de raiva ou ódio intenso, mesmo quem tem bens maravilhosos sente vontade de atirá-los longe, de quebrá-los. Naquele instante, os bens não significam nada. Hoje em dia, há sociedades bastante evoluídas em termos materiais, e no entanto em seu seio muitas pessoas não são muito felizes. Logo abaixo da bela aparência de afluência há uma espécie de inquietação mental que leva à frustração, a brigas desnecessárias, à dependência de drogas ou álcool e, no pior dos casos, ao suicídio. Não há, portanto, nenhuma garantia de que a riqueza em si possa proporcionar a alegria ou a realização que buscamos. Pode-se dizer também o mesmo a respeito dos amigos. Quando se está num estado exacerbado de raiva ou ódio, até mesmo um amigo íntimo parece de algum modo meio frio ou gélido, distante e perfeitamente irritante."
"Tudo isso indica a tremenda influência que o estado da mente, o fator mental, exerce sobre nossa experiência do dia-a-dia. Naturalmente, devemos encarar esse fator com muita seriedade."
"Portanto, deixando de lado a perspectiva da prática espiritual, mesmo em termos terrenos, no que diz respeito a levarmos uma existência feliz no dia-a-dia, quanto maior o nível de serenidade da mente, maior será nossa paz de espírito e maior nossa capacidade para levar uma vida feliz e prazerosa."
O Dalai Lama parou por um instante como que para deixar que essa idéia assentasse e depois prosseguiu.
— Eu deveria mencionar que, quando falamos de um estado mental sereno ou de paz de espírito, não deveríamos confundir isso com um estado mental totalmente insensível, apático. Ter um estado de espírito tranqüilo ou calmo não significa ser completamente desligado ou ter a mente totalmente vazia. A paz de espírito ou a serenidade têm como origem o afeto e a compaixão. Nisso há um nível muito alto de sensibilidade e sentimento.
"Desde que falte a disciplina interior que traz a serenidade mental", disse ele, para resumir "não importa quais sejam as condições ou meios externos que normalmente se considerariam necessários para a felicidade, eles nunca nos darão a sensação de alegria e felicidade que buscamos. Por outro lado, quando dispomos dessa qualidade interior, uma serenidade mental, uma certa estabilidade interna, nesse caso, mesmo que faltem vários recursos externos que normalmente se considerariam necessários para a felicidade, ainda é possível levar uma vida feliz e prazerosa."
O Contentamento Interior
Ao atravessar o estacionamento para ir me encontrar com o Dalai Lama numa tarde, parei para admirar um Toyota Land Cruiser novinho em folha, o tipo de carro que vinha querendo havia muito tempo. Ainda com o carro na cabeça quando comecei minha sessão, fiz uma pergunta.
— Às vezes parece que toda a nossa cultura, a cultura ocidental, se baseia nas aquisições materiais. Vivemos cercados, bombardeados, por anúncios das últimas novidades a comprar, do último modelo de automóvel e assim por diante. É difícil não ser influenciado por isso. São tantas as coisas que queremos, que desejamos. Parece que não têm fim. O senhor poderia falar um pouco sobre o desejo?— Creio que há dois tipos de desejo — respondeu o Dalai Lama. — Certos desejos são positivos. O desejo da felicidade. É absolutamente certo. O desejo da paz. O desejo de um mundo mais harmonioso, mais amigo. Certos desejos são muito úteis.
"Mas, a certa altura, os desejos podem tornar-se absurdos. Isso geralmente resulta em problemas. Ora, por exemplo, eu às vezes visito supermercados. Realmente adoro supermercados porque posso ver muita coisa bonita. E assim, quando olho para todos aqueles artigos diferentes, surge em mim uma sensação de desejo, e meu impulso inicial poderia ser: 'Ah, eu quero isso e mais aquilo'. Brota então um segundo pensamento e eu me pergunto: 'Ora, será que eu preciso mesmo disso?' Geralmente a resposta é 'não'. Se obedecermos àquele primeiro desejo, àquele impulso inicial, muito em breve estaremos de bolsos vazios. No entanto, o outro nível de desejo, baseado nas nossas necessidades essenciais de alimentação, vestuário e moradia, é algo mais razoável."
"Às vezes, determinar se um desejo é excessivo ou negativo é algo que depende das circunstâncias ou da sociedade em que se vive. Por exemplo, para quem vive numa sociedade afluente na qual é preciso um carro para ajudar a pessoa a cumprir a rotina diária, nesse caso não há nada de errado em querer ter um carro. Porém, se a pessoa mora num lugarejo pobre na Índia, onde se pode viver muito bem sem um carro, e ainda sente o desejo de ter um, mesmo que disponha do dinheiro para comprá-lo, essa compra pode acabar causando problemas. Pode gerar um sentimento de perturbação entre os vizinhos, entre outras coisas. Ou, caso se viva numa sociedade mais próspera e se tenha um carro mas não se pare de querer carros sempre mais caros, isso também leva ao mesmo tipo de problema."
— Mas eu não consigo ver como querer ou comprar um carro mais caro causa problemas para o indivíduo, desde que ele tenha condições para isso. Ter um carro mais caro do que os de seus vizinhos poderia ser um problema para eles (pois poderiam sentir inveja ou algo semelhante) mas ter um carro novo daria à pessoa, em si, uma sensação de satisfação e prazer.
O Dalai Lama abanou a cabeça e respondeu com firmeza.
— Não... A satisfação pessoal em si não pode determinar se um desejo ou ato é positivo ou negativo. Um assassino pode ter uma sensação de satisfação no momento em que comete o assassinato, mas isso não justifica o ato. Todas as ações condenáveis, a mentira, o roubo, o adultério, entre outras, são cometidas por pessoas que podem na ocasião ter um sentimento de satisfação. O que distingue um desejo ou ato positivo de um negativo não é a possibilidade de ele lhe proporcionar uma satisfação imediata mas, sim, se ele acaba gerando conseqüências positivas ou negativas. Por exemplo, no caso do anseio por bens mais caros, se ele estiver baseado numa atitude mental que simplesmente quer cada vez mais, a pessoa acaba atingindo um limite daquilo que consegue adquirir e se defronta com a realidade. E, quando ela chega a esse limite, perde toda a esperança, mergulha na depressão e assim por diante. É um perigo inerente a essa espécie de desejo.
"E, para mim, esse tipo de desejo excessivo gera a ganância, manifestação exagerada do desejo, baseada na exacerbação das expectativas. E, quando refletimos sobre os excessos da ganância, concluímos que ela conduz o indivíduo a uma sensação de frustração, decepção, a muita confusão e muitos problemas. Quando se trata de lidar com a ganância, um aspecto perfeitamente característico é que, embora ela decorra do desejo de obter alguma coisa, ela não se satisfaz com a obtenção. Torna-se, portanto, algo meio sem limites, como um poço sem fundo, e isso gera perturbação. Um traço interessante da ganância é que, apesar de seu motivo subjacente ser a busca da satisfação, mesmo depois da obtenção do objeto do seu desejo, a pessoa ainda não está satisfeita, o que é uma ironia. O verdadeiro antídoto para a ganância é o contentamento. Se a pessoa tiver um forte sentido de contentamento, não faz diferença se consegue o objeto desejado ou não. De uma forma ou de outra, ela continua contente."
Como podemos, então, alcançar esse contentamento íntimo? Há dois métodos. Um consiste em obter tudo o que se quer e deseja — todo o dinheiro, todas as casas, os automóveis, o parceiro perfeito e o corpo perfeito. O Dalai Lama já salientou a desvantagem dessa abordagem. Se nossos desejos e vontades permanecerem desenfreados, mais cedo ou mais tarde vamos deparar com algo que queremos e não podemos ter. O segundo método, que é mais confiável, consiste em não ter o que queremos mas, sim, em querer e apreciar o que temos.
Há pouco tempo, assisti a uma entrevista na televisão com Christopher Reeve, o ator que caiu de um cavalo em 1994 e teve lesões na medula espinhal que o deixaram totalmente paralisado do pescoço para baixo e exigem que ele respire com aparelhos em caráter permanente. Quando o entrevistador perguntou como ele lidava com a depressão decorrente da sua invalidez, Reeve confessou ter vivido um curto período de total desespero enquanto estava na unidade de terapia intensiva do hospital. Prosseguiu, porém, dizendo que esse sentimento de desespero passou com relativa rapidez e que agora ele francamente se considerava "um cara de sorte". Mencionou a felicidade de ter mulher e filhos amorosos, mas também falou com gratidão do veloz progresso da medicina moderna (que, por seus cálculos, descobrirá uma cura para as lesões na medula espinhal dentro dos próximos dez anos), e afirmou que, se seu acidente tivesse sido apenas alguns anos antes, ele provavelmente teria morrido em decorrência das lesões. Enquanto descrevia o processo de adaptação à paralisia, Reeve disse que, embora seu desespero se tivesse dissolvido com bastante rapidez, de início ele ainda era perturbado por crises intermitentes de inveja que podiam ser detonadas por alguma frase inocente como, por exemplo, "Vou subir correndo para apanhar isso". Ao aprender a lidar com esses sentimentos, ele disse ter percebido que o único jeito de seguir pela vida é olhar para o que se tem, ver o que ainda se pode fazer. No seu caso, felizmente, ele não havia sofrido nenhuma lesão cerebral, e ainda tinha uma mente que podia usar. Ao concentrar a atenção dessa forma nos recursos de que dispõe, Reeve decidiu usar sua mente para aumentar a conscientização do público e informá-lo a respeito das lesões na medula espinhal, para ajudar outras pessoas; e tem planos para continuar a falar em público assim como para escrever e dirigir filmes.
O valor interior
Já vimos como trabalhar com nosso modo de encarar a vida é um meio mais eficaz para alcançar a felicidade do que procurá-la através de fontes externas, tais como a riqueza, a posição social ou mesmo a saúde física. Outra fonte interna de felicidade, estreitamente ligada a uma sensação íntima de contentamento, é uma noção de amor-próprio. Ao descrever a base mais confiável para desenvolver esse sentido de amor-próprio, o Dalai Lama deu a seguinte explicação.— Agora, no meu caso, por exemplo, suponhamos que eu não tivesse nenhum sentimento humano profundo, nenhuma capacidade para fazer bons amigos com facilidade. Sem isso, quando perdi meu próprio país, quando minha autoridade política no Tibete chegou ao fim, tornar-me um refugiado teria sido muito difícil. Enquanto eu estava no Tibete, em virtude da estrutura do sistema político, havia um certo grau de respeito concedido ao posto do Dalai Lama; e as pessoas me tratavam de acordo, independentemente de sentirem ou não verdadeiro afeto por mim. Porém, se essa fosse a única base da relação do povo comigo, então, quando perdi meu país, tudo teria sido dificílimo. Só que existe outra fonte de valorização e dignidade a partir da qual podemos nos relacionar com outros seres humanos. Podemos nos relacionar com eles porque ainda somos um ser humano, dentro da comunidade humana. Compartilhamos esse vínculo. E esse vínculo humano é suficiente para dar ensejo a uma sensação de valorização e dignidade. Esse vínculo pode tornar-se uma fonte de consolo na eventualidade de se perder tudo o mais.
O Dalai Lama parou por um instante para bebericar o chá, abanou a cabeça e prosseguiu.
— Lamentavelmente, quando se estuda história, encontram-se casos de imperadores ou reis no passado que perderam sua posição em decorrência de alguma convulsão política e foram forçados a abandonar seu país, mas daí em diante sua história não foi positiva. Creio que, sem aquele sentimento de afeto e ligação com outros seres humanos, a vida passa a ser muito difícil.
"Em termos gerais, podem existir dois tipos diferentes de indivíduos. Por um lado, pode-se ter uma pessoa rica e bem-sucedida, cercada de parentes e assim por diante. Se a fonte de dignidade e sentido de valor dessa pessoa for apenas material, então, enquanto sua fortuna persistir, talvez essa pessoa possa manter uma sensação de segurança. Porém, no momento em que a fortuna minguar, a pessoa sofrerá por não haver nenhum outro refúgio. Por outro lado, pode-se ter outra pessoa que goze de sucesso financeiro e situação econômica semelhante, mas que ao mesmo tempo seja carinhosa, afetuosa e tenha o sentimento da compaixão. Como essa pessoa tem outra fonte de valorização, outra fonte que lhe confere uma noção de dignidade, outra âncora, há menos probabilidade de essa pessoa se deprimir se sua fortuna por acaso desaparecer. Através desse tipo de raciocínio, pode-se ver o valor prático do afeto e calor humano no desenvolvimento de uma sensação íntima de valor."
A felicidade e o prazer
Alguns meses após as palestras do Dalai Lama no Arizona, fui visitá-lo em casa em Dharamsala. Era uma tarde muito quente e úmida em julho, e cheguei à sua casa empapado de suor depois de uma curta caminhada a partir do lugarejo. Por eu vir de um clima seco, a umidade naquele dia me parecia quase insuportável, e eu não estava com o melhor dos humores quando nos sentamos para começar a conversar. Já ele parecia estar animadíssimo. Pouco depois do início da conversa, nós nos voltamos para o tópico do prazer. A certa altura, ele fez uma observação crucial.— Agora, as pessoas às vezes confundem a felicidade com o prazer. Por exemplo, há não muito tempo eu estava falando a uma platéia indiana em Rajpur. Mencionei que o propósito da vida era a felicidade, e alguém da platéia disse que Rajneesh ensina que nossos momentos mais felizes ocorrem durante a atividade sexual e que, logo, é através do sexo que podemos nos tornar mais felizes. — O Dalai Lama deu uma risada gostosa. — Ele queria saber o que eu achava da idéia. Respondi que, do meu ponto de vista, a maior felicidade é a de quando se atinge o estágio de Liberação, no qual não mais existe sofrimento. Essa é a felicidade genuína, duradoura. A verdadeira felicidade está mais relacionada à mente e ao coração. A felicidade que depende principalmente do prazer físico é instável. Um dia, ela está ali; no dia seguinte, pode não estar.
Em termos superficiais, sua observação parecia bastante óbvia. É claro que a felicidade e o prazer são sensações diferentes. E no entanto, nós, os seres humanos, costumamos ter um talento especial para confundi-las. Não muito depois de voltar para casa, durante uma sessão de terapia com uma paciente, eu viria a ter uma demonstração concreta de como pode ser importante essa simples percepção.
Heather era uma jovem profissional liberal solteira que trabalhava como psicóloga na região de Phoenix. Embora gostasse do emprego que tinha, no qual trabalhava com jovens problemáticos, já havia algum tempo ela vinha se sentindo cada vez mais insatisfeita com a vida na região. Costumava queixar-se da população crescente, do trânsito e do calor sufocante no verão. Fizeram-lhe a oferta de um emprego numa linda cidadezinha nas montanhas. Na realidade, ela já visitara a cidadezinha muitas vezes e sempre sonhara em se mudar para lá. Era perfeito. O único problema era que o emprego que lhe ofereciam envolvia o trabalho com uma clientela adulta. Havia semanas, ela lutava com a decisão de aceitar ou não o novo emprego. Simplesmente não conseguia se decidir. Tentou fazer uma lista de prós e contras, mas dela resultou um empate irritante.
— Eu sei que não gostaria do trabalho lá tanto quanto do daqui, mas isso seria mais do que compensado pelo mero prazer de morar naquela cidade! Eu realmente adoro aquilo lá. Só estar lá já faz com que eu me sinta bem. E estou tão cansada do calor aqui que simplesmente não sei o que fazer.
Seu uso do termo "prazer" me fez lembrar as palavras do Dalai Lama; e, procurando me aprofundar um pouco, fiz uma pergunta.
— Você acha que mudar para lá lhe traria maior felicidade ou maior prazer?
Ela ficou calada um instante, sem saber como encarar a pergunta.
— Não sei... — respondeu afinal. — Sabe de uma coisa? Acho que me traria mais prazer do que felicidade... Em última análise, acho que não seria realmente feliz trabalhando com aquela clientela. Acho que é mesmo muito gratificante trabalhar com os jovens no meu emprego...
A simples reformulação do seu dilema em termos de "Será que isso vai me trazer felicidade?" pareceu conferir uma certa clareza. De repente, ficou muito mais fácil para ela tomar a decisão. E resolveu permanecer em Phoenix. É claro que ainda se queixava do calor do verão. No entanto, decidir em plena consciência ficar em Phoenix, com base naquilo que ela achava que acabaria por fazê-la mais feliz, de algum modo tornou o calor mais suportável.
Todos os dias deparamos com inúmeras decisões e escolhas. E, por mais que tentemos, é freqüente não escolhermos aquilo que sabemos ser "bom para nós". Em parte isso está relacionado ao fato de que "a escolha certa" costuma ser a difícil — aquela que envolve algum sacrifício do nosso prazer.
Em todos os séculos, homens e mulheres dedicaram grande esforço à tentativa de definir o papel adequado que o prazer desempenharia na nossa vida — uma verdadeira legião de filósofos, teólogos e psicólogos, todos estudando nossa ligação com o prazer. No século III a.C., Epicuro baseou seu sistema ético na ousada afirmação de que "o prazer é o início e o fim de uma vida abençoada". Mas até mesmo Epicuro reconheceu a importância do bom senso e da moderação, e admitiu que a devoção desenfreada a prazeres sensuais poderia, pelo contrário, resultar em sofrimento. Nos anos finais do século XIX, Sigmund Freud dedicava-se a formular suas próprias teorias sobre o prazer. De acordo com Freud, a força motivadora fundamental de todo o aparelho psíquico era o desejo de aliviar a tensão causada por impulsos instintivos não realizados. Em outras palavras, nossa motivação oculta é a busca do prazer. No século XX, muitos pesquisadores optaram por deixar de lado especulações mais filosóficas; e, em vez disso, um exército de neuroanatomistas passou a dedicar-se a espetar o hipotálamo e as regiões límbicas do cérebro com eletrodos, à procura daquele ponto que produz o prazer quando recebe estimulação elétrica.
Nenhum de nós realmente precisa de filósofos gregos mortos, de psicanalistas do século XIX ou de cientistas do século XX para nos ajudar a entender o prazer. Nós sabemos quando o sentimos. Nós o reconhecemos no toque ou no sorriso de um ser amado, na delícia de um banho quente de banheira numa tarde fria e chuvosa, na beleza de um pôr-do-sol. Entretanto, muitos de nós também conhecem o prazer no arroubo frenético da cocaína, no êxtase da heroína, na folia de uma bebedeira, na delícia do sexo sem restrições, na euforia de uma temporada de sorte em Las Vegas. Esses também são prazeres muito verdadeiros — prazeres com os quais muitos na nossa sociedade precisam aprender a conviver.
Embora não haja soluções fáceis para evitar esses prazeres destrutivos, felizmente temos por onde começar: o simples lembrete de que o que estamos procurando na vida é a felicidade. Como o Dalai Lama salienta, esse é um fato inconfundível. Se abordarmos nossas escolhas na vida tendo isso em mente, será mais fácil renunciar a atividades que acabam nos sendo prejudiciais, mesmo que elas nos proporcionem um prazer momentâneo. O motivo pelo qual costuma ser tão difícil adotar o "É só dizer não!" encontra-se na palavra "não". Essa abordagem está associada a uma noção de rejeitar algo, de desistir de algo, de nos negarmos algo.
Existe, porém, um enfoque melhor: enquadrar qualquer decisão que enfrentemos com a pergunta "Será que ela me trará felicidade?" Essa simples pergunta pode ser uma poderosa ferramenta para nos ajudar a gerir com habilidade todas as áreas da nossa vida, não apenas na hora de decidir se vamos nos permitir o uso de drogas ou aquele terceiro pedaço de torta de banana com creme. Ela permite que as coisas sejam vistas de um novo ângulo. Lidar com nossas decisões e escolhas diárias com essa questão em mente desvia o foco daquilo que estamos nos negando para aquilo que estamos buscando — a máxima felicidade. Uma felicidade definida pelo Dalai Lama como estável e persistente. Um estado de felicidade que, apesar dos altos e baixos da vida e das flutuações normais do humor, permanece como parte da própria matriz do nosso ser. A partir dessa perspectiva, é mais fácil tomar a "decisão acertada" porque estamos agindo para dar algo a nós mesmos, não para negar ou recusar algo a nós mesmos — uma atitude de movimento na direção de algo, não de afastamento; uma atitude de união com a vida, não de rejeição a ela. Essa percepção subjacente de estarmos indo na direção da felicidade pode exercer um impacto profundo. Ela nos torna mais receptivos, mais abertos, para a alegria de viver.
O caminho da felicidade
Quando se identifica o estado mental como o fator primordial para alcançar a felicidade, naturalmente não se está negando que nossas necessidades físicas fundamentais de alimentação, vestuário e moradia não sejam satisfeitas. Entretanto, uma vez atendidas essas necessidades básicas, a mensagem é clara: não precisamos de mais dinheiro, não precisamos de mais sucesso ou fama, não precisamos do corpo perfeito, nem mesmo do parceiro perfeito — agora mesmo, neste momento exato, dispomos da mente, que é todo o equipamento básico de que precisamos para alcançar a plena felicidade.Assim começou o Dalai Lama, ao apresentar sua abordagem ao trabalho com a mente.
— Quando nos referimos à "mente" ou à "consciência", há muitas variedades diferentes. Da mesma forma que acontece com as condições ou objetos externos, alguns aspectos são muito úteis, outros muito prejudiciais e outros são neutros. E, quando lidamos com assuntos externos, geralmente tentamos primeiro identificar quais dessas diferentes substâncias ou produtos químicos são benéficos para que possamos nos dedicar a cultivá-los, propagá-los e usá-los. E das substâncias que são danosas nós nos livramos. De modo similar, quando falamos sobre a mente, há milhares de pensamentos diferentes ou de "mentes" diferentes. Entre eles, alguns são muito úteis. Esses, deveríamos nutrir. Alguns são negativos, muito prejudiciais. Esses deveríamos tentar reduzir.
"Portanto, o primeiro passo na busca da felicidade é o aprendizado. Antes de mais nada, temos de aprender como as emoções e comportamentos negativos nos são prejudiciais e como as emoções positivas são benéficas. E precisamos nos conscientizar de como essas emoções negativas não são prejudiciais e danosas somente para nós mesmos mas perniciosas para a sociedade e para o futuro do mundo inteiro também. Esse tipo de conscientização aumenta nossa determinação para encará-las e superá-las. Em seguida, vem a percepção dos aspectos benéficos das emoções e comportamentos positivos. Uma vez que nos demos conta disso, tornamo-nos determinados a valorizar, desenvolver e aumentar essas emoções positivas por mais difícil que seja. Há uma espécie de disposição espontânea que vem de dentro. Portanto, através desse processo de aprendizado, de análise de quais pensamentos e emoções são benéficos e quais são nocivos, aos poucos desenvolvemos uma firme determinação de mudar, com a sensação de que 'Agora o segredo da minha própria felicidade, do meu próprio futuro, está nas minhas mãos. Não posso perder essa oportunidade'."
"No buddhismo, o princípio da causalidade é aceito como uma lei natural. Ao lidar com a realidade, é preciso levar essa lei em consideração. Por exemplo, no caso de experiências do dia-a-dia, se houver certos tipos de acontecimentos que a pessoa não deseje, o melhor método de garantir que tais acontecimentos não ocorram consiste em certificar-se de que não mais se dêem as condições causais que normalmente propiciam aquele acontecimento. De modo análogo, caso se deseje que ocorra um acontecimento ou experiência específica, a atitude lógica a tomar consiste em procurar e acumular as causas e condições que dêem ensejo a ele."
"O mesmo vale para experiências e estados mentais. Quem deseja a felicidade deveria procurar as causas que a propiciam; e se não desejamos o sofrimento, o que deveríamos fazer é nos certificarmos de que as causas e condições que lhe dariam ensejo não mais se manifestem. É muito importante uma apreciação desse princípio causal."
"Ora, já falamos da suprema importância do fator mental para que se alcance a felicidade. Nossa próxima tarefa é, portanto, examinar a variedade de estados mentais que vivenciamos. Precisamos identificar com clareza diferentes estados mentais e fazer distinção entre eles, classificando-os segundo sua capacidade de levar à felicidade ou não."
— O senhor pode dar alguns exemplos específicos de diferentes estados mentais e descrever como os classificaria? — perguntei.
— Por exemplo, o ódio, o ciúme, a raiva, entre outros, são prejudiciais — explicou o Dalai Lama. — Nós os consideramos estados mentais negativos porque eles destroem nossa felicidade mental. Uma vez que abriguemos sentimentos de ódio ou rancor contra alguém, uma vez que nós mesmos estejamos cheios de ódio ou de emoções negativas, outras pessoas também nos parecerão hostis. Logo, disso resultam mais medo, maior inibição e hesitação, assim como uma sensação de insegurança. Essas sensações se desdobram e, com elas, a solidão em meio a um mundo visto como hostil. Todos esses sentimentos negativos derivam do ódio. Por outro lado, estados mentais como a bondade e a compaixão são decididamente positivos. São muito úteis...
— Eu só queria saber... — disse eu, interrompendo-o. — O senhor diz que existem milhares de estados mentais diferentes. Qual seria sua definição de uma pessoa saudável ou equilibrada em termos psicológicos? Nós poderíamos usar uma definição dessas como uma diretriz para determinar quais estados mentais cultivar e quais suprimir?
Ele riu antes de responder com sua humildade característica.
— Como psiquiatra, você poderia ter uma definição melhor de uma pessoa saudável em termos psicológicos.
— Mas o que eu quero dizer é do seu ponto de vista.
— Bem, eu consideraria saudável uma pessoa bondosa, carinhosa, cheia de compaixão. Se mantemos um sentimento de compaixão, de generosidade amorosa, algo automaticamente abre nossa porta interior. Através dela, podemos nos comunicar com os outros com uma facilidade muito maior. E essa sensação de calor humano gera uma espécie de abertura. Concluímos que todos os seres humanos são exatamente como nós e, assim, podemos nos relacionar com eles com maior facilidade. Isso nos confere um espírito de amizade. Há então menos necessidade de esconder coisas e, por conseguinte, os sentimentos de medo, de dúvida e de insegurança se dissolvem automaticamente. Da mesma forma, isso gera nos outros uma sensação de confiança. Do contrário, por exemplo, poderíamos encontrar alguém que é muito competente e saber que podemos confiar na competência daquela pessoa. No entanto, se sentirmos que essa pessoa não é generosa, ficamos com um pé atrás. Nossa sensação é "Ah, eu sei que essa pessoa é capaz, mas posso mesmo confiar nela?", e assim sempre temos uma certa apreensão, que gera uma forma de distanciamento.
"Portanto, seja como for, na minha opinião, cultivar estados mentais positivos como a generosidade e a compaixão decididamente conduz a uma melhor saúde mental e à felicidade."
A disciplina mental
Enquanto ele falava, descobri algo muito interessante na abordagem do Dalai Lama para alcançar a felicidade. Ela era absolutamente prática e racional: identificar e cultivar estados mentais positivos; identificar e eliminar estados mentais negativos. Embora sua sugestão de começar pela análise sistemática da variedade dos estados mentais que experimentamos me parecesse de início um pouco árida, aos poucos fui me encantando com a força da sua lógica e raciocínio. E gostei do fato de que, em vez de classificar os estados mentais, as emoções ou desejos com base em algum julgamento moral imposto de fora, como "a cobiça é um pecado" ou "o ódio é condenável", ele distingue as emoções como positivas ou negativas atendo-se apenas ao fato de elas acabarem levando ou não à felicidade.— Se a felicidade é uma simples questão de cultivar mais estados mentais positivos, como a generosidade entre outros, por que tanta gente é infeliz? — perguntei-lhe ao retomar nossa conversa na tarde do dia seguinte.
— Alcançar a verdadeira felicidade pode exigir que efetuemos uma transformação na nossa perspectiva, nosso modo de pensar, e isso não é nada simples — respondeu ele. — É necessária a aplicação de muitos fatores diferentes provenientes de direções diferentes. Não se deveria ter a idéia, por exemplo, de que há apenas uma solução, um segredo; e de que, se a pessoa conseguir acertar qual é, tudo dará certo. É semelhante a cuidar direito do corpo físico. Precisa-se de uma variedade de vitaminas e nutrientes, não apenas de um ou dois. Da mesma forma, para alcançar a felicidade, precisa-se de uma variedade de abordagens e métodos para lidar com os vários e complexos estados mentais negativos, e para superá-los. E se a pessoa está procurando superar certos modos negativos de pensar, não é possível conseguir isso apenas com a adoção de um pensamento específico ou a prática de uma técnica uma vez ou duas. A mudança demora. Mesmo a mudança física leva tempo. Por exemplo, se a pessoa está mudando de um clima para outro, o corpo precisa de tempo para se adaptar ao novo ambiente. E, da mesma forma, transformar a mente leva tempo. São muitos os traços mentais negativos, e é necessário lidar com cada um deles e neutralizá-los. Isso não é fácil. Exige a repetida aplicação de várias técnicas e a dedicação de tempo para a familiarização com as práticas. É um processo de aprendizado.
"Creio, porém, que à medida que o tempo vai passando, podemos realizar mudanças positivas. Todos os dias, ao acordar, podemos desenvolver uma motivação positiva sincera, pensando, 'Vou utilizar este dia de um modo mais positivo. Eu não deveria desperdiçar justamente este dia.' E depois, à noite, antes de nos deitarmos, poderíamos verificar o que fizemos, com a pergunta 'Será que utilizei este dia como planejava?' Se tudo correu de acordo com o planejado, isso é motivo para júbilo. Se não deu certo, deveríamos lamentar o que fizemos e passar a uma crítica do dia. Assim, através de métodos como esses, é possível aos poucos fortalecer os aspectos positivos da mente."
"Agora, no meu caso como monge buddhista, por exemplo, acredito no buddhismo e através da minha própria experiência sei que essas práticas buddhistas me são muito úteis. Contudo, em decorrência do hábito, ao longo de muitas vidas anteriores, certos aspectos podem brotar, como a raiva ou o apego. E nesse caso o que eu faço é o seguinte: em primeiro lugar, o aprendizado do valor positivo das práticas; em segundo, o fortalecimento da determinação; e, finalmente, a tentativa de implementar as práticas. No início, a implementação das práticas positivas é muito fraca. Com isso, as influências negativas ainda detêm grande poder. Porém, com o tempo, à medida que vamos gradativamente implantando as práticas positivas, os comportamentos negativos se reduzem automaticamente. Portanto, a prática do Dharma¹ é de fato uma constante batalha interior, que substitui o antigo condicionamento ou hábito negativo por um novo condicionamento positivo."
E prosseguiu.
— Não importa qual seja a atividade ou a prática a que queiramos nos dedicar, não há nada que não se torne mais fácil com o treinamento e a familiaridade constantes. Por meio do treinamento, podemos mudar, podemos nos transformar. Dentro da prática buddhista, há vários métodos voltados para o esforço de manter a mente calma quando acontece algo de perturbador. Através da prática repetida desses métodos, podemos chegar ao ponto em que alguma perturbação possa ocorrer, mas os efeitos negativos exercidos sobre nossa mente permanecem na superfície, como ondas que podem agitar a superfície do oceano mas que não têm grande impacto nas profundezas. E, embora minha experiência possa ser muito limitada, descobri a confirmação disso na minha própria prática. Portanto, se recebo alguma notícia trágica, naquele momento posso experimentar alguma perturbação na minha mente, mas ela desaparece muito depressa. Ou ainda, posso me irritar e gerar alguma raiva; mas, da mesma forma, ela se dissipa com rapidez. Não há nenhum efeito nas profundezas da mente. Nenhum ódio. Esse ponto foi alcançado através do exercício gradual. Não aconteceu da noite para o dia.
Claro que não. O Dalai Lama vem se dedicando ao treinamento da mente desde os quatro anos de idade.
O treinamento sistemático da mente — o cultivo da felicidade, a genuína transformação interior através da seleção deliberada de estados mentais positivos, seguida da concentração neles, além do questionamento dos estados mentais negativos — é possível graças à própria estrutura e função do cérebro. Nascemos com cérebros que já vêm equipados geneticamente com certos padrões de comportamentos instintivos. Somos predispostos mental, emocional e fisicamente para reagir ao ambiente com atitudes que permitam nossa sobrevivência. Esses sistemas básicos de instruções estão codificados em inúmeros modelos inatos de ativação de células nervosas, combinações específicas de células do cérebro que atuam em resposta a algum dado acontecimento, experiência ou pensamento. No entanto, a configuração dos nossos cérebros não é estática, não é irrevogavelmente fixa. Nossos cérebros também são adaptáveis. Neurocientistas documentaram o fato de que o cérebro pode projetar novos modelos, novas combinações de células nervosas e de neurotransmissores (substâncias químicas que transmitem mensagens entre as células nervosas) em resposta a novos estímulos. Na realidade, nosso cérebro é maleável e sempre está mudando, reconfigurando seus circuitos de acordo com novos pensamentos e experiências. E, em decorrência do aprendizado, a função dos próprios neurônios individuais muda, o que permite que os sinais elétricos transitem por eles com maior rapidez. Os cientistas chamam de "plasticidade" a capacidade de mudar inerente ao cérebro.
Essa capacidade de redefinir a configuração do cérebro, de desenvolver novas conexões neurais, foi demonstrada em experiências como, por exemplo, uma realizada pelos doutores Avi Karni e Leslie Underleider nos National Institutes of Mental Health. Nessa experiência, os pesquisadores fizeram com que os objetos desempenhassem uma tarefa simples de coordenação motora, um exercício de batucar com os dedos, e identificaram por meio de um exame de ressonância magnética quais as partes do cérebro envolvidas na tarefa. Os objetos da pesquisa passaram então a praticar o exercício dos dedos todos os dias ao longo de quatro semanas, tornando-se pouco a pouco mais eficientes e rápidos. Ao final do período de quatro semanas, foi repetido o exame do cérebro, e ele revelou que a área do cérebro envolvida na tarefa havia expandido. Isso indicou que a prática regular e a repetição da tarefa haviam recrutado novas células nervosas e haviam mudado as conexões neurais que originalmente estavam envolvidas na tarefa.
Essa notável característica do cérebro parece ser o embasamento fisiológico para a possibilidade de transformação da nossa mente. Com a mobilização dos nossos pensamentos e a prática de novos modos de pensar, podemos remodelar nossas células cerebrais e alterar o modo de funcionar do nosso cérebro. Ela é também a base para a idéia de que a transformação interior começa com o aprendizado (novos estímulos) e envolve a disciplina de substituir gradativamente nosso "condicionamento negativo" (correspondente aos nossos padrões atuais característicos de ativação de células nervosas) por um "condicionamento positivo" (com a formação de novos circuitos neurais). Assim, a idéia de treinar a mente para a felicidade passa a ser uma possibilidade real.
A disciplina ética
Em conversa posterior relacionada ao treinamento da mente para a felicidade, o Dalai Lama salientou o seguinte ponto.— Creio que o comportamento ético é outra característica do tipo de disciplina interior que leva a uma existência mais feliz. Ela poderia ser chamada de disciplina ética. Grandes mestres espirituais, como o Buddha, aconselham-nos a realizar atos saudáveis e a evitar o envolvimento com atos prejudiciais. Se nossa ação é saudável ou prejudicial, depende de essa ação ou ato ter como origem um estado mental disciplinado ou não disciplinado. A percepção é que uma mente disciplinada leva à felicidade; e uma mente não disciplinada leva ao sofrimento. E, na realidade, diz-se que fazer surgir a disciplina no interior da mente é a essência do ensinamento do Buddha.
"Quando falo de disciplina, refiro-me à autodisciplina, não à disciplina que nos é imposta de fora por outros. Além disso, refiro-me à disciplina que é aplicada com o objetivo de superar nossas qualidades negativas. Uma gangue de criminosos pode precisar de disciplina para efetuar um roubo com êxito, mas essa disciplina é inútil."
O Dalai Lama parou de falar por um instante e pareceu estar refletindo, organizando os pensamentos. Ou talvez estivesse apenas procurando uma palavra em inglês. Não sei. No entanto, pensando na nossa conversa enquanto ele fazia a pausa naquela tarde, algum aspecto de toda essa história relativa à importância do aprendizado e da disciplina começou a me parecer bastante entediante em comparação com os sublimes objetivos da verdadeira felicidade, da evolução espiritual e da completa transformação interior. Parecia-me que a busca da felicidade deveria de algum modo ser um processo mais espontâneo. Levantei essa questão com um aparte.
— O senhor descreve as emoções e comportamentos negativos como sendo "prejudiciais" e os comportamentos positivos como "salutares". Além disso, afirma que uma mente sem treinamento ou disciplina geralmente resulta em comportamentos negativos ou prejudiciais, de modo que precisamos aprender a nos treinar para aumentar nossos comportamentos positivos. Até aí, tudo bem.
"Mas o que me perturba é que sua própria definição de comportamentos negativos ou prejudiciais é a daqueles comportamentos que resultam em sofrimento. E define um comportamento salutar como o que resulte em felicidade. O senhor também parte da premissa básica de que todos os seres por natureza querem evitar o sofrimento e alcançar a felicidade. Esse desejo é inato. Não precisa ser aprendido. A questão é, portanto, a seguinte: se nos é natural querer evitar o sofrimento, por que não sentimos, de modo espontâneo e natural, uma repugnância maior pelos comportamentos negativos ou prejudiciais, à medida que amadurecemos? E se é natural querer alcançar mais felicidade, por que não somos cada vez mais atraídos, de modo espontâneo e natural, para comportamentos salutares, tornando-nos assim mais felizes à medida que nossa vida avança? Ou seja, se esses comportamentos salutares levam naturalmente à felicidade, e nós queremos a felicidade, isso não deveria ocorrer como um processo natural? Por que deveríamos precisar de tanta educação, treinamento e disciplina para que esse processo se desenrole?"
— Mesmo em termos convencionais, no nosso dia-a-dia — respondeu o Dalai Lama —, consideramos a educação um fator importantíssimo para a garantia de uma vida feliz e de sucesso. E o conhecimento não se obtém espontaneamente. É preciso treinamento; temos de passar por uma espécie de programa de treinamento sistemático e assim por diante. E consideramos essa instrução e treinamento convencional bastante árduos. Se não fosse assim, por que os alunos anseiam tanto pelas férias? E, no entanto, sabemos que esse tipo de instrução é vital para garantir uma vida feliz e bem-sucedida.
"Da mesma forma, realizar atos salutares pode não nos ocorrer naturalmente, mas temos de fazer um treinamento consciente nesse sentido. Isso acontece, especialmente na sociedade moderna, porque existe uma tendência a aceitar que a questão dos atos salutares e dos prejudiciais — o que se deve e o que não se deve fazer — é algo que se considera pertencer à esfera da religião. Tradicionalmente, considerou-se ser responsabilidade da religião prescrever quais comportamentos são salutares e quais não são. Contudo, na sociedade atual, a religião perdeu até certo ponto seu prestígio e influência. E, ao mesmo tempo, nenhuma alternativa, como por exemplo uma ética secular, veio substituí-la. Por isso, parece que se dedica menos atenção à necessidade de levar um estilo saudável de vida. É por isso que acredito que precisamos fazer um esforço especial e trabalhar com consciência com o objetivo de adquirir esse tipo de conhecimento. Por exemplo, embora eu pessoalmente acredite que nossa natureza humana é essencialmente benévola e compassiva, tenho a impressão de que não basta que essa seja nossa natureza fundamental; devemos também desenvolver uma valorização e conscientização desse fato. E a transformação de como nos percebemos, através do aprendizado e do entendimento, pode ter um impacto muito verdadeiro no modo como interagimos com os outros e como conduzimos nosso dia-a-dia."
— Mesmo assim, o senhor usa a analogia do treinamento e formação acadêmica tradicional — retruquei, no papel de advogado do diabo. — Isso é uma coisa. Porém, se estamos falando de certos comportamentos que o senhor chama de "salutares" ou positivos, que resultariam na felicidade, e outros comportamentos que resultariam em sofrimento, por que é necessário tanto tempo de aprendizado para identificar quais comportamentos se enquadram em qual categoria e tanto treinamento para implementar os comportamentos positivos e eliminar os negativos? Ou seja, se alguém põe a mão no fogo, ele se queima. A pessoa recolhe a mão, tendo aprendido que esse comportamento resulta em sofrimento. Não é preciso um longo aprendizado ou treinamento para que ela aprenda a não mais tocar no fogo.
"Ora, por que não são assim todos os comportamentos ou emoções que resultam em sofrimento? Por exemplo, o senhor alega que a raiva e o ódio são emoções nitidamente negativas e que acabam levando ao sofrimento. Mas por que é preciso que a pessoa seja instruída a respeito dos efeitos danosos da raiva e do ódio para eliminá-los? Como a raiva causa de imediato um estado emocional desagradável, e é sem dúvida fácil perceber diretamente essa perturbação, por que as pessoas não passam simplesmente a evitá-la no futuro de modo espontâneo e natural?"
Enquanto o Dalai Lama ouvia atentamente meus argumentos, seus olhos inteligentes se arregalaram um pouco, como se ele estivesse levemente surpreso com a ingenuidade das minhas perguntas, ou até mesmo como se as considerasse divertidas. Depois, com uma risada vigorosa, cheia de boa vontade, ele respondeu.
— Quando se diz que o conhecimento conduz à liberdade ou à solução de um problema, é preciso compreender que há muitos níveis diferentes. Digamos, por exemplo, que os seres humanos na Idade da Pedra não sabiam cozinhar a carne mas mesmo assim tinham a necessidade biológica de consumi-la. Por isso, comiam exatamente como um animal selvagem. À medida que evoluíram, aprenderam a cozinhar, a acrescentar temperos para tornar a comida mais saborosa e depois inventaram pratos mais diversificados. E até mesmo na atualidade, se estamos com alguma doença específica e, através do conhecimento, aprendemos que um certo tipo de alimento não é bom para nós, muito embora tenhamos o desejo de consumi-lo, nós nos refreamos. Portanto, está claro que quanto mais sofisticado for o nível do nosso conhecimento, com maior eficácia lidaremos com o mundo natural.
"É também preciso julgar as conseqüências dos nossos comportamentos a longo e a curto prazo, para ponderá-las. Por exemplo, no controle da raiva. Apesar de os animais poderem experimentar a raiva, eles não podem entender que a raiva é destrutiva. No caso dos seres humanos, porém, há um nível diferente, no qual se tem uma espécie de percepção de si mesmo que permite refletir e observar que, quando a raiva surge, ela prejudica a pessoa. Portanto, pode-se concluir que a raiva é destrutiva. É preciso ser capaz de fazer essa inferência. Logo, não se trata de algo tão simples quanto pôr a mão no fogo, queimar-se e aprender a nunca mais fazer isso no futuro. Quanto mais sofisticado for seu grau de instrução e de conhecimento a respeito do que leva à felicidade e do que provoca o sofrimento, maior será seu sucesso em alcançar a felicidade. É por isso que eu considero a educação e o conhecimento cruciais."
Percebendo, suponho eu, minha persistente resistência à idéia da mera educação como meio de transformação interior, ele observou.
— Um problema da nossa sociedade atual é que temos uma atitude diante da educação como se ela existisse apenas para tornar as pessoas mais inteligentes, para torná-las mais criativas. Às vezes chega mesmo a parecer que aqueles que não receberam grande instrução, aqueles que são menos sofisticados em termos de formação acadêmica, são mais inocentes e honestos. Muito embora nossa sociedade não dê ênfase a esse aspecto, a aplicação mais valiosa do conhecimento e da instrução é a de nos ajudar a entender a importância da dedicação a atos mais salutares e da implantação da disciplina na nossa mente. A utilização correta da nossa inteligência e conhecimento consiste em provocar mudanças de dentro para fora, para desenvolver um bom coração.
Nossa natureza fundamental
Ora, fomos feitos para procurar a felicidade. E está claro que os sentimentos de amor, afeto, intimidade e compaixão trazem a felicidade. Creio que cada um de nós dispõe da base para ser feliz, para ter acesso aos estados mentais de amor e compaixão que produzem a felicidade — afirmou o Dalai Lama. — Na realidade, é uma das minhas crenças fundamentais que nós não só possuímos inerentemente o potencial para a compaixão, mas também que a natureza básica ou essencial do ser humano é a serenidade.— Em que o senhor baseia essa crença?
— A doutrina buddhista da "Natureza do Buddha" oferece alguns fundamentos para a crença de que a natureza essencial de todos os seres sencientes é basicamente serena e não agressiva. Pode-se, entretanto, adotar esse enfoque sem que seja preciso recorrer à doutrina buddhista da "Natureza do Buddha". Há também outros fatores nos quais baseio essa crença. Para mim o tema do afeto humano ou da compaixão não é apenas uma questão religiosa. Trata-se de um fator indispensável na vida do dia-a-dia.
"Para começar, se olharmos o próprio modelo da nossa existência desde a tenra infância até a morte, poderemos ver como somos nutridos pelo afeto dos outros. E isso a partir do nascimento. Nosso primeiro ato após o nascimento é o de mamar o leite da nossa mãe ou de outra mulher. É um ato de afeto, de compaixão. Sem ele, não podemos sobreviver. Isso é claro. E esse ato não pode ser realizado a menos que exista um sentimento mútuo de afeto. Por parte da criança, se não houver nenhum sentimento de afeto pela pessoa que estiver amamentando, se não houver nenhum vínculo, pode acontecer de a criança não mamar. E, sem o afeto por parte da mãe ou da outra pessoa, pode ser que o leite não flua livremente. E assim é a vida. Assim é a realidade."
"Além disso, nossa estrutura física parece ser mais adequada a sentimentos de amor e compaixão. Podemos ver como uma disposição mental tranqüila, afetuosa e salutar produz efeitos benéficos para nossa saúde e bem-estar físico. Inversamente, sentimentos de frustração, de medo, agitação e raiva podem ser danosos à nossa saúde."
"Podemos ver também que nossa saúde emocional é beneficiada por sentimentos de afeto. Para entender isso, basta refletir sobre como nos sentimos quando os outros nos demonstram carinho e afeto. Ou ainda, observemos como nossos próprios sentimentos ou atitudes afetuosas de modo natural e automático nos afetam de dentro para fora, como fazem com que nos sintamos. Essas emoções mais suaves e os comportamentos positivos que as acompanham propiciam uma vida familiar e comunitária mais feliz."
"Por isso, creio que podemos deduzir que nossa natureza essencial como seres humanos é uma natureza meiga. E se é esse o caso, faz ainda mais sentido tentar levar uma vida que esteja mais em harmonia com essa doce natureza fundamental do nosso ser."
— Se nossa natureza essencial é gentil e cheia de compaixão — perguntei —, eu só gostaria de saber como o senhor explica todos os conflitos e comportamentos agressivos que nos cercam por todos os lados.
O Dalai Lama baixou a cabeça, pensativo, por um instante antes de responder.
— Naturalmente não podemos ignorar o fato de que existem conflitos e tensões, não apenas dentro da mente de um indivíduo, mas também dentro da família, quando interagimos com outras pessoas, e na sociedade, no nível nacional e mundial. Pois, ao examinar tudo isso, algumas pessoas concluem que a natureza humana é basicamente agressiva. Elas podem apontar para a história da humanidade, sugerindo que, em comparação com o comportamento de outros mamíferos, o do ser humano é muito mais agressivo. Ou ainda, podem alegar, "É verdade, a compaixão faz parte da nossa mente. Mas a raiva também faz parte da nossa mente. Elas pertencem à nossa natureza em termos iguais. As duas se encontram mais ou menos no mesmo nível." Mesmo assim — disse ele, com firmeza, debruçando-se para a frente na cadeira, tenso com um ar alerta —, ainda tenho a firme convicção de que a natureza humana é fundamentalmente bondosa, meiga. Essa é a característica predominante da natureza humana. A raiva, a violência e a agressividade podem sem dúvida surgir, mas para mim isso ocorre num nível secundário ou mais superficial. Em certo sentido, elas surgem quando nos sentimos frustrados nos nossos esforços para alcançar o amor e o afeto. Não fazem parte da nossa natureza mais básica, mais fundamental.
"Portanto, embora a agressividade possa ocorrer, creio que esses conflitos não são necessariamente decorrentes da natureza humana, mas, sim, que resultem do intelecto humano — uma inteligência humana em desequilíbrio, o uso inadequado da nossa inteligência, das nossas faculdades imaginativas. Ora, ao examinar a evolução humana, creio que nosso corpo físico pode ter sido muito fraco em comparação com o de outros animais. No entanto, graças ao desenvolvimento da inteligência humana, fomos capazes de usar muitos instrumentos e descobrir muitos métodos para superar condições ambientais adversas. À medida que a sociedade humana e as condições ambientais foram aos poucos se tornando mais complexas, tornou-se necessário um papel cada vez maior da nossa inteligência e capacidade cognitiva para fazer frente às exigências cada vez maiores desse ambiente complexo. Por isso, creio que nossa natureza básica ou fundamental é a serenidade, e que a inteligência é um desdobramento posterior. Creio também que, se aquela capacidade humana, aquela inteligência humana, apresentar um desenvolvimento desequilibrado, sem que seja adequadamente compensada pela compaixão, nesse caso ela pode tornar-se destrutiva. Pode ter conseqüências desastrosas."
"Creio, porém, ser importante reconhecer que, se os conflitos humanos são criados pelo uso indevido da inteligência, também podemos utilizar a inteligência para descobrir meios e formas para superar esses conflitos. Quando a inteligência e a bondade ou afeto são usados em conjunto, todos os atos humanos passam a ser construtivos. Quando combinamos um coração amoroso com o conhecimento e a educação, podemos aprender a respeitar as opiniões e os direitos dos outros. Isso se torna a base de um espírito de reconciliação que pode ser usado para dominar a agressividade e resolver nossos conflitos."
O Dalai Lama fez uma pausa e deu uma olhada de relance no relógio.
— Portanto — concluiu ele — por maior que seja a violência ou por mais numerosas que sejam as atrocidades pelas quais tenhamos de passar, creio que a solução definitiva para nossos conflitos, tanto internos quanto externos, reside na volta à nossa natureza humana básica ou fundamental, que é meiga e cheia de compaixão. — Olhando mais uma vez para o relógio, ele deu um riso afável. — E então... vamos parar por aqui... Foi um longo dia! — Apanhou os sapatos, que havia descalçado durante a conversa, e se recolheu para seu quarto.
A questão da natureza humana
Ao longo das últimas décadas, a concepção do Dalai Lama da natureza compassiva latente nos seres humanos parece estar aos poucos ganhando terreno no Ocidente, embora tenha sido uma luta árdua. A noção de que o comportamento humano é essencialmente egocêntrico, de que no fundo é mesmo cada um por si, está profundamente enraizada no pensamento ocidental. A idéia de que não só nós somos inerentemente egoístas, mas de que a agressividade e a hostilidade fazem parte da natureza humana essencial domina nossa cultura há séculos. Naturalmente, ao longo da história houve um bom número de pessoas com opinião contrária. Por exemplo, em meados do século XVIII, David Hume escreveu muito sobre a "benevolência natural" dos seres humanos. E um século depois, até mesmo Charles Darwin atribuiu um "instinto de solidariedade" à nossa espécie. No entanto, por algum motivo, a visão mais pessimista da humanidade está arraigada na nossa cultura, pelo menos desde o século XVII, sob a influência de filósofos como Thomas Hobbes, que tinha uma opinião bastante negativa da espécie humana. Ele considerava a humanidade violenta, competitiva, em constante conflito e preocupada apenas com interesses pessoais. Hobbes, que era famoso por descartar qualquer idéia de uma bondade humana essencial, foi uma vez flagrado dando esmola a um mendigo na rua. Quando questionado a respeito desse impulso generoso, ele alegou não estar fazendo aquilo para ajudar o mendigo; estava só aliviando sua própria consternação diante da pobreza do homem.Da mesma forma, no início deste século, o filósofo espanhol George Santayana escreveu que impulsos generosos, atenciosos, embora possam existir, costumam ser fracos, efêmeros e instáveis na natureza humana, mas "cave um pouco abaixo da superfície e descobrirá um ser feroz, persistente, profundamente egoísta". Infelizmente, a psicologia e a ciência ocidental apoderaram-se de idéias como essa, deram sanção e até fomentaram essa visão do egoísmo. A partir dos primeiros tempos da moderna psicologia científica, houve uma pressuposição geral e fundamental de que toda a motivação humana é em última análise egoísta, baseada meramente no interesse pessoal.
Depois de aceitar implicitamente a premissa do nosso egocentrismo essencial, uma série de cientistas proeminentes ao longo dos últimos cem anos acrescentou a ela uma crença na natureza agressiva essencial dos humanos. Freud afirmou que "a inclinação à agressividade é uma disposição original, instintiva e que subsiste por seus próprios meios". Na segunda metade deste século, dois autores em especial, Robert Ardrey e Konrad Lorenz, observaram padrões de comportamento animal em certas espécies de predadores e concluíram que os seres humanos eram basicamente predadores também, providos de um impulso inato ou instintivo para lutar por território.
Nos últimos anos, porém, a maré parece estar se voltando contra essa visão profundamente pessimista da humanidade, aproximando-se mais da percepção do Dalai Lama da brandura e compaixão da nossa natureza latente. Ao longo das duas ou três últimas décadas, houve literalmente centenas de estudos científicos que indicaram que a agressividade não é essencialmente inata e que o comportamento violento é influenciado por uma variedade de fatores biológicos, sociais, situacionais e ambientais. Talvez a declaração mais abrangente sobre as pesquisas mais recentes esteja resumida na Declaração sobre a Violência de Sevilha de 1986, que foi redigida e firmada por vinte cientistas de renome, do mundo inteiro. Nesse texto, eles naturalmente reconheceram que o comportamento violento ocorre, sim, mas afirmaram categoricamente que é incorreto em termos científicos dizer que temos uma tendência herdada para entrar em guerras ou para agir com violência. Esse comportamento não está programado geneticamente na natureza humana. Disseram que, apesar de termos o sistema neural necessário para agir com violência, esse comportamento em si não é ativado de modo automático. Não há nada na nossa neurofisiologia que nos obrigue a agir com violência. Ao examinar o tema da natureza humana essencial, a maioria dos pesquisadores no campo percebe atualmente que no fundo temos o potencial para nos tornarmos pessoas serenas, atenciosas, ou pessoas violentas, agressivas. O impulso que acaba sendo realçado é em grande parte uma questão de treinamento.
Pesquisadores contemporâneos refutaram a idéia da agressividade inata da humanidade. Não só isso, mas a idéia de que os seres humanos têm um egoísmo inato também está sofrendo ataque. Estudiosos como C. Daniel Batson ou Nancy Eisenberg, da Arizona State University, realizaram numerosas pesquisas ao longo dos últimos anos que demonstram que os seres humanos têm uma tendência ao comportamento altruísta. Alguns cientistas, como a socióloga dra. Linda Wilson, procuram descobrir por que isso acontece. Ela propôs a hipótese de que o altruísmo pode fazer parte do nosso instinto básico de sobrevivência — o exato oposto de idéias de pensadores anteriores que postulavam que a hostilidade e a agressividade eram a principal característica do nosso instinto de sobrevivência. Ao examinar mais de cem catástrofes naturais, a dra. Wilson descobriu um forte padrão de altruísmo entre as vítimas, que parecia fazer parte do processo de recuperação. Descobriu que o trabalho em conjunto para ajudar uns aos outros costumava afastar a possibilidade de problemas psicológicos no futuro, problemas que poderiam ter resultado do trauma.
A tendência a criar fortes laços com outros, em ações destinadas ao bem-estar dos outros tanto quanto ao próprio, pode estar profundamente enraizada na natureza humana, tendo sido criada no passado remoto, quando aqueles que se uniam e faziam parte de um grupo tinham uma chance maior de sobreviver. Essa necessidade de fortes vínculos sociais persiste até hoje. Em estudos, como por exemplo um realizado pelo dr. Larry Scherwitz, com o objetivo de pesquisar os fatores de risco para a doença coronariana, descobriu-se que as pessoas que tinham o foco mais concentrado em si mesmas (aquelas que se referiam a si mesmas usando os pronomes "eu", "mim" e "meu" com maior freqüência numa entrevista) tinham maior probabilidade de desenvolver doença coronariana, mesmo quando outros comportamentos prejudiciais à saúde estavam sob controle. Cientistas estão descobrindo que as pessoas a quem faltam fortes laços sociais parecem ter a saúde frágil, níveis mais altos de infelicidade e uma maior vulnerabilidade ao estresse.
Tomar a iniciativa de ajudar os outros pode ser tão essencial à nossa natureza quanto a comunicação. Seria possível traçar uma analogia com o desenvolvimento da linguagem que, à semelhança da capacidade para a compaixão e o altruísmo, é uma das esplêndidas características da espécie humana. Determinadas áreas do cérebro são especificamente devotadas ao potencial para a linguagem. Se formos expostos às condições ambientais adequadas, ou seja, a uma sociedade que fala, essas áreas distintas do cérebro começam a se desenvolver e a amadurecer à medida que nossa capacidade para a linguagem for crescendo. Da mesma forma, todos os seres humanos podem ter como dom natural a "semente da compaixão". Quando exposta às condições adequadas — em casa, na sociedade como um todo e, mais tarde talvez, por meio dos nossos próprios esforços direcionados — essa "semente" vicejará. Com essa idéia em mente, pesquisadores estão agora procurando descobrir as condições ambientais ótimas que permitam que a semente da atenção e compaixão pelos outros amadureça em crianças. Já identificaram alguns fatores: ter pais capazes de moderar suas próprias emoções, que sejam modelos de comportamento atencioso, que estabeleçam limites adequados para o comportamento dos filhos, que comuniquem à criança que ela é responsável pelo seu próprio comportamento e que usem a argumentação para ajudar a direcionar a atenção da criança para estados emocionais ou afetivos bem como para as conseqüências do seu comportamento sobre os outros.
Uma revisão dos nossos pressupostos básicos acerca da natureza latente dos seres humanos, de hostil para solidária, pode abrir novas possibilidades. Se começamos por pressupor o modelo de todo o comportamento humano baseado no interesse pessoal, um bebê serve de exemplo perfeito, como "prova" dessa teoria. Ao nascer, os bebês parecem estar programados com apenas uma idéia na cabeça: a gratificação das suas próprias necessidades — alimento, conforto físico e assim por diante. Entretanto, se eliminarmos esse pressuposto egoísta básico, um quadro totalmente novo começa a surgir. Poderíamos com a mesma facilidade dizer que um bebê nasce programado para apenas uma coisa: a capacidade e objetivo de trazer prazer e alegria aos outros. Pela simples observação de um bebê saudável, seria difícil negar a meiga natureza latente dos seres humanos. E, a partir dessa nova perspectiva, poderíamos defender com sucesso a hipótese de ser inata a capacidade de dar prazer ao outro, a quem lhe devota cuidados. Por exemplo, num recém-nascido, o sentido do olfato é desenvolvido até talvez apenas 5% da capacidade de um adulto; e o sentido do paladar é pouquíssimo desenvolvido. Mas o que existe desses sentidos no recém-nascido está voltado para o cheiro e para o sabor do leite materno. O ato de amamentar não só fornece nutrientes ao bebê; ele também serve para aliviar a tensão nos seios. Logo, poderíamos dizer que o bebê nasce com uma capacidade inata para dar prazer à mãe, por meio do alívio da tensão nos seios.
Um bebê também está programado em termos biológicos para reconhecer e reagir a rostos; e são poucas as pessoas que deixam de sentir um prazer autêntico quando um bebê fita, inocente, seus olhos e sorri. Alguns etólogos formularam uma teoria a partir dessa constatação, propondo que, quando um bebê sorri para quem cuida dele ou olha direto para os olhos dessa pessoa, esse bebê está cumprindo um "projeto biológico" profundamente arraigado, que instintivamente ele está "liberando" comportamentos ternos, atenciosos, meigos, na pessoa que lhe presta cuidados, que por sua vez também está obedecendo a uma ordem instintiva igualmente irresistível. À medida que mais pesquisadores saem em campo para descobrir objetivamente a natureza dos seres humanos, a concepção do bebê como uma trouxinha de egoísmo, uma máquina de comer e dormir, está cedendo lugar a uma visão de um ser que vem ao mundo com um mecanismo inato destinado a dar prazer aos outros, exigindo apenas as condições ambientais adequadas para permitir que a "semente de compaixão" latente e natural germine e cresça.
Uma vez que cheguemos à conclusão de que a natureza básica da humanidade é bondosa em vez de agressiva, nosso relacionamento com o mundo à nossa volta muda de imediato. Encarar os outros como seres essencialmente bondosos, em vez de hostis e egoístas, nos ajuda a relaxar, a confiar, a viver tranqüilos. Essa atitude nos torna mais felizes.
Meditação sobre o propósito da vida
Enquanto o Dalai Lama permaneceu no deserto do Arizona naquela semana, voltado para o estudo da natureza humana e o exame da mente humana com a atenção minuciosa de um cientista, uma nítida verdade parecia refulgir e iluminar todas as conversas: o propósito da vida é a felicidade. Essa simples afirmação pode ser usada como uma ferramenta poderosa para nos ajudar a superar os problemas diários da vida. A partir dessa perspectiva, passa a ser nossa tarefa descartar o que provoca o sofrimento e acumular o que nos leva à felicidade. O método, a prática diária, envolve uma expansão gradual da nossa conscientização e entendimento do que realmente propicia a felicidade e do que não a propicia.Quando a vida se torna muito complicada e nos sentimos assoberbados, costuma ser útil dar um simples passo atrás e lembrar a nós mesmos qual é nosso propósito geral, nosso objetivo. Quando deparamos com uma sensação de estagnação e confusão, pode ser valioso tirar uma hora, uma tarde ou mesmo alguns dias para apenas refletir sobre o que de fato nos trará a felicidade, e então reordenar nossas prioridades com base nessa reflexão. Isso pode pôr nossa vida de volta no contexto adequado, permitir uma nova perspectiva e nos possibilitar ver que direção tomar.
De vez em quando, deparamos com decisões cruciais capazes de afetar toda a trajetória da nossa vida. Podemos, por exemplo, resolver que vamos nos casar, ter filhos ou iniciar estudos para nos tornarmos advogados, artistas ou eletricistas. A firme resolução de sermos felizes — de aprender sobre os fatores que conduzem à felicidade e de adotar medidas positivas para construir uma vida mais feliz — pode ser uma decisão exatamente desse tipo. A adoção da felicidade como um objetivo legítimo e a decisão consciente de procurar a felicidade de modo sistemático podem exercer uma profunda mudança no restante das nossas vidas.
O entendimento que o Dalai Lama tem dos fatores que acabam propiciando a felicidade é baseado em toda uma vida de observação metódica da própria mente, de exames da natureza da condição humana e de investigação desses aspectos dentro de uma estrutura estabelecida pela primeira vez pelo Buddha há mais de 25 séculos. E é a partir dessa tradição que o Dalai Lama chegou a algumas conclusões explícitas sobre quais atividades e pensamentos são mais valiosos. Ele resumiu suas crenças nas seguintes palavras que podem ser usadas como uma meditação.
— Às vezes, quando me encontro com velhos amigos, lembro-me de como o tempo passa depressa. E isso faz com que eu me pergunte se utilizamos nosso tempo bem ou não. A utilização adequada do tempo é de extrema importância. Enquanto tivermos esse corpo e especialmente esse assombroso cérebro humano, creio que cada minuto é algo precioso. Nossa existência diária é repleta de esperança, embora não haja nenhuma garantia quanto ao nosso futuro. Não há nenhuma garantia de que amanhã a esta hora estaremos aqui. Mesmo assim, trabalhamos para isso apenas com base na esperança. Portanto, precisamos fazer o melhor uso possível do nosso tempo. Creio que a melhor utilização do tempo é a seguinte: se for possível, servir aos outros, a outros seres sencientes. Se não for possível, pelo menos procurar não prejudicá-los. Creio que esta é toda a base da minha filosofia.
"Logo, reflitamos sobre o que realmente tem valor na vida, o que confere significado à nossa vida, e fixemos nossas prioridades com base nisso. O propósito da nossa vida precisa ser positivo. Não nascemos com a finalidade de causar problemas, de prejudicar os outros. Para que nossa vida tenha valor, creio que devemos desenvolver boas qualidades humanas essenciais — o carinho, a bondade, a compaixão. Com isso nossa vida ganha significado e se torna mais tranqüila, mais feliz."
(S.S. o Dalai Lama e Howard C. Cutler. A arte da felicidade: um manual para a vida.
Tradução de Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Pág. 13-72.)
Tradução de Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Pág. 13-72.)
Um comentário:
Fui agraciada com esse texto. Muito Obrigada
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